um domingo chuvoso de primavera
a vida de cada um seria a do outro
a vida possível, talvez não a desejada
a vida do outro poderia ser a de cada um
recolho fragmentos de frases soltas
cacos de vidro que dilaceram
sei que não lerás nem responderás, mas devo falar
mesmo cansada de lutar contra todas as impossibilidades
dos discursos e das ações
a grande loucura da solidão deve ser essa, falar pra ninguém escutar,
falar em silêncio na madrugada fria, chuvosa, alheia à dor
de qualquer janela onde já vivi pintei trechos do mundo onde me encontro e nas lembranças dos meus olhos revejo os diferentes verdes da vegetação, árvores de vários climas, países e estações
verde cor que gosto, verdes olhos de bruxa assim dizem, paisagens, beira-mar
verdes seriam as fronteiras em paz, na terra sem fronteiras, muros ou grades
paz
a grande solidão dos loucos deve ser essa, falar pra ninguém entender,
falar em praça pública nas tardes quentes,
o zumbido dos mosquitos e moscas ecoando sem fim
rodopia minha insensatez mal contida num invólucro tão pequeno
e o vulcão implode
um sopro de vento mais forte me leva pra longe
o mesmo vento que pode fazer mal e derrubar é o vento que soprou e sopra
em minha memória: o morro dos ventos uivantes, mary poppins, e o vento levou..., lembranças de uma infância inacabada, de uma tempestade em alto-mar, moby dick,
o velho e o mar, o mar, o mar
estranha a atração das águas pelas águas,
viscosas, doces, salgadas, placentas, espermas
não há coincidências
outra ressaca se aproxima
choverá forte e nas ondas estarei
em busca de redenção
da água vieste e à água retornarás
o pó que nos recobre se vai com a ventania
e é esse o medo atávico
- se desnudar, se descobrir, se revelar
penso (em você) sem mais pensar
lembro (de você) sem mais lembrar
já não durmo
sonho (com você) sem mais sonhar
sou o que és,
ocupo-te sem o saberes
porto seguro
onde ancorei minha minúscula embarcação
e descansei enfim
essa casca de noz que flutua
cascas partidas de nós
marinheira de tantas viagens
imaginárias e reais
navego teus pensamentos
sentidos e sentimentos
tento entender
tento, quebrada, perdida, partida...
barquinho de papel
num oceano em fúria
canto das sereias, odisséias
sigo o destino incerto
que quis assim
que me quer assim
sem pertencimento
sem merecimentos
em segredo prossigo
percorro o rio que secou, o Rio de Janeiro, o rio de outubro, o rio de antes